Escritor Valter Hugo Mãe participa da programação do Flipoços

Um dos maiores nomes da literatura portuguesa da atualidade, o escritor nascido Valter Hugo Lemos em Angola e criado em Portugal, adotou o sobrenome Mãe por um motivo especial: essa é a figura com maior capacidade de amar. Vencedor do Prêmio Literário José Saramago com o remorso de baltazar serapião, reverenciado pelo próprio Saramago como um “tsunami literário”, Valter Hugo Mãe está em Poços de Caldas onde cumpre extensa agenda na programação do Flipoços 2025.
Na tarde deste sábado (26), antes do primeiro compromisso oficial no festival, ele recebeu jornalistas para um longo, descontraído – mas também profundo – bate-papo sobre literatura, vida, brasilidade, política, língua portuguesa, futuro e a importância de eventos que aproximam o autor de seu público.
Escritor, editor e artista plástico, cursou pós-graduação em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea na Universidade do Porto. Possui livros publicados de poesia, contos e narrativa longa. Em 2007, atingiu o reconhecimento público com a conquista do Prêmio Literário José Saramago com o seu segundo romance, o remorso de baltazar serapião. Seus quatro primeiros romances são conhecidos como a tetralogia das minúsculas: todos os livros, incluindo o nome do autor, foram escritos sem letras capitais. Seu objetivo foi valorizar a natureza oral dos textos e reaproximar a literatura do pensamento.
É a sua primeira vez em Poços?
Valter Hugo Mãe: Eu julgo que sim (risos). Eu tenho a sensação que eu ei por aqui correndo, mas eu não tenho propriamente memória disso. Estou declarando que é a primeira vez. Talvez seja mentira, mas enquanto ficcionista estou habituado à mentira (risos).
Você já é habitual no Brasil, costuma vir bastante para o Brasil, principalmente para eventos como esse. O que você considera sobre a importância desses eventos para a divulgação da literatura e do seu trabalho?
Valter Hugo Mãe: Eu acho os eventos literários fundamentais. Eu estou cada vez mais convencido que este tipo de evento manifesta o levantamento das comunidades, das populações, digamos assim. Quanto mais as pessoas tiverem a oportunidade de se aproximar do livro mais isso manifesta um empoderamento que, eventualmente, as levará a uma cidadania mais consciente e a história mostra muito isso. A história mostra que os povos mais longevos foram os povos que dominaram as bibliotecas e que imprimiram, por exemplo. Não é por acaso que enquanto o Brasil foi colônia portuguesa estava proibido de imprimir. A impressão, e no fundo a escrita, estavam nas mãos de um prepotente dominador. A liberdade e o empoderamento pressupõem esse o ao pensamento e à divulgação do pensamento. Então esses eventos, para mim, significam o povo levantando-se, significam que as pessoas estão eventualmente mais próximas de uma cidadania efetiva e mais afastadas de uma submissão, inclusive de uma dimensão meramente consumidora e isso interessa-me muito, interessa-me que as pessoas sejam prestigiadas com a cidadania ao invés de humilhadas com o consumo.

E você gosta de estar com o leitor, gosta de estar com o público, ou é um desafio, um exercício para o escritor, cujo ofício é solitário?
Valter Hugo Mãe: Eu tenho essas duas coisas. Eu sou um pouco tímido, sobretudo eu fui muito tímido. E agora eu sou um tímido disfarçado. É como se eu pintasse o cabelo, eu criei, assim, uma cosmética e consigo sobreviver em sociedade, digamos. Mas a minha natureza é muito solitária e meio reclusa. Quando eu preciso de escrever, eu fico fugindo porque eu distraio com tudo, sinto que o livro me escapa por todos os motivos. Às vezes até eu próprio sou irritação suficiente para que o livro não aconteça, não dê para escrever porque eu sou sozinho já sou uma multidão, já sou complexo suficiente para atrapalhar tudo. Mas depois eu tenho essa coisa de também gostar muito de encontrar as pessoas. Minha experiência é muito grata, eu encontro leitores que, de fato, me acarinham muito e tornaram-se até fundamentais para que eu possa criar essa outra dimensão que se sobrepõe à timidez e a essa propensão natural para estar sozinho. Então, eu gosto mesmo muito desses eventos, vou sempre muito cheio de livros, compro muitos, gosto sempre de ver o que está sendo publicado em outros países e nas diversas regiões. O Brasil é um país muito grande, o que acontece em Poços pode não estar a acontecer em mais lugar nenhum e, às vezes, eu encontro autores de que gosto e que até começo lendo bem antes de o país inteiro estar lendo. Eu lembro, por exemplo, da primeira vez que encontrei a Carla Madeira, ela publicada apenas em Minas, numa editora muito bonita, mas humilde e quando ela estourou e virou assim um caso muito popular eu já estava careca de saber quem ela era, já tinha lido, já tinha entendido e já estava à espera de que ela tivesse uma dimensão nacional. Então esses eventos são perfeitos para eu ficar catando as coisas que me podem interessar.
Você falou sobre a diversidade e a grandeza do Brasil, já disse também em outras entrevistas que o Brasil é muito importante para você. O que é que tem de Brasil na obra de Valter Hugo Mãe?
Valter Hugo Mãe: Tem muita coisa. Talvez não seja imediatamente perceptível, mas tem, sobretudo, um certo despudor. Não estou dizendo que os brasileiros sejam despudorados, mas é um despudor em relação à língua que, para mim, enquanto português criado em Portugal não seria expectável. E isso acontece no meu trabalho porque muito cedo eu entrei em contato com autores brasileiros. Quer literários, quer musicais. A música foi muito importante para mim, as telenovelas que eu, em criança, via em família. A gente não perdia nenhuma novela todos os dias. Havia uma novela que ava na televisão nacional e que era uma coisa assistida mais religiosamente que a missa. Desde a estreia de Gabriela, O Casarão, O Astro, Água Viva, Dancin’ Days e depois novelas mais recentes como Cambalacho, Guerra dos Sexos, com a Fernanda Montenegro… A gente via a Beth Faria, o Tony Ramos, a Elizabeth Savala. E ainda hoje quando vejo qualquer coisa com a Elizabeth Savala e tenho assim uma nostalgia porque ela era uma figura muito preponderante de uma novela, que era Pai Herói, ela fazia par com o Tony Ramos e nós queríamos muito que eles fossem felizes para sempre. Num mundo perfeito, para mim, a Elizabeth Savala seria casada com o Tony Ramos até hoje. Eu acho um pouco absurdo que os atores não cumpram o destino das novelas (risos). Mas isso tudo está na minha obra, essa predisposição para escrever de um jeito que não é iminentemente português. Que é na língua portuguesa, mas é um jeito meio mestiçado, meio mesclado e que vem sobretudo da influência do Brasil. É curioso porque eu nasci em Angola, mas eu não tenho memórias de Angola, eu era bebê quando cheguei a Portugal e a cultura angolana não entrou, era muito mais difícil, mais opaca. Acho que eu acompanhei o Brasil porque o Brasil, de repente, inundou a cultura portuguesa. Havia um esplendor brasileiro, o levantamento de uma cultura que vinha desde a bossa nova, toda a música brasileira que se impõe no mundo, não só em Portugal, com Tom Jobim, com tudo que vem da Tropicália, então eu acho que minha aproximação com o Brasil também tem que ver com a minha necessidade de entender que a minha identidade é um pouco dali, mas também é um pouco do outro lado do mar. Tinha um oceano no meio da minha identidade e alguma coisa precisava de chegar do lado de lá dessa água. O Brasil era muito mais emissor que Angola. Então eu sei que, se calhar, até tragicamente para a minha costela angolana, eu acho que sou bastante mais brasileiro que angolano. Nasci lá, mas acho que a minha formação é muito mais próxima do Brasil.
O que você acha dessa polêmica que existe entre o português brasileiro e português de Portugal?
Valter Hugo Mãe: Eu acho que vai ter sempre, ainda durante muitas gerações. O europeu é um povo que pretende olhar para o futuro porque o ado dele é todo uma burrada. A gente fica lá com os museus, colocando tudo em arquivo, fazendo com que tudo seja meio morto. O Brasil é o contrário, o Brasil é uma coisa que não tem como estar morta, é profundamente viva e toda a contingência brasileira é consequência do ado, então não dá pra arquivar o ado, o Brasil não tem esse privilégio de ter um ado arquivado, transformado em objeto de museu, como se fosse só para visitar. Porque no momento em que a coisa está no museu ela dessacraliza porque não tem mais uso pelo povo. E a Europa é isso, é um lugar que foi dessacralizando porque precisa de caminhar para um tempo futuro porque o tempo ado foi tenebroso, é preciso muito estômago para encarar tudo que aconteceu feito pela Europa. Então, eu acho que todo o incômodo, todos os memes, todas as estranhezas vão se seguir durante mais gerações. Agora, eu acho importante sobretudo que a gente se conheça para que percebamos o que que está em causa. Há dias eu estava vendo o título de um livro, que estava numa livraria fechada e não consegui comprar, mas era um livro que dizia “Racismo sem racistas”. E isso é uma coisa que, por exemplo, eu acho que alguém que não saia da Europa não vai entender. Precisa de vir a esses territórios para entender o que está em causa quando a gente fala de racismo estrutural, quando a gente fala de um sistema e até mesmo de uma língua que ela própria pode ser xenófoba, racista, machista. O que está em causa quando a gente fala que alguns problemas atingiram a estrutura. Nenhum europeu vai entender isso se não sair da Europa, então é importante haver esse ruído, esse protesto, esse combate. Eu enquanto português muitas vezes tenho vergonha, é uma lástima enorme que a história seja feita assim, mas eu quero ao menos estar consciente do que foi a história para poder, eventualmente, funcionar como um veículo para um futuro que seja mais justo, mais equilibrado, onde o que aconteceu não volte a acontecer.
E como é ver esse futuro com os pés em 2025, na era da pós-verdade, das redes sociais, dessa cegueira branca, como disse Saramago lá em 95?
Valter Hugo Mãe: É desolador. Eu, no meu tempo de profundamente esperançado na humanidade, cheguei a dizer que achava que o Brasil finalmente era um país de uma cidadania madura, que eu achava que o brasileiro já não se deixaria capturar por determinadas coisas. […] A tragédia do Brasil também potenciou uma cultura que é muito ímpar, você tem muitas poucas nações no mundo com 200 anos de autonomia que conseguem maturar uma literatura, uma música, a criatividade no Brasil é exuberante, produz dos melhores pensadores do mundo, das pessoas mais brilhantes, mais inspiradoras e das mais necessárias, inclusive. Ao mesmo tempo em que aqui é o território onde tudo pode acabar também é o lugar onde aparecem as figuras que melhor apontam maneiras de recomeçar, como Ailton Krenak, Nêgo Bispo, Bispo do Rosário, a maneira como arte dele opera é tudo ainda muito seminal, muito fertilizador, enquanto que o pensamento europeu é um pensamento já necrófilo, apocalíptico, em que a gente está no máximo tentando respirar nos escombros. O Brasil ainda não é escombros, ainda é natureza, ainda é fertilidade, e talvez por isso esteja na mira em relação a todos os abusos.
Você é muito fatalista em relação a Portugal…
Valter Hugo Mãe: Eu sou fatalista em relação a tudo. […] Eu tenho muita esperança, mas cada vez mais numa espécie de poética que possa ser inaugurado do que propriamente nas pessoas que existem. Eu acho que as pessoas que existem já deram muito erro. Estou à espera de figuras novas, quero muito ver pessoas novas.
O Flipoços tem uma programação muito especial para crianças, para o público infantil, seria esse o caminho?
Valter Hugo Mãe: Eu não sei muito escrever para crianças porque eu sempre complico as coisas e as crianças não conseguem ler (risos). Não é da minha natureza. Eu adoraria, mas não consigo. Fica logo tudo meio violento, é gente que morre, eu sou português e tenho um lado trágico de afogamento e de fado, mas eu acho que sim, acho que a formação de públicos infantis, a nutrição da criança com pensamento, com instrução, com autoestima é fundamental.
Você disse que gosta da solitude, mas as suas obras exploram muito o sentimento humano. Onde você busca inspiração para o que você escreve?
Valter Hugo Mãe: Eu tento escrever para atravessar esse espaço de silêncio, esse lugar que não é exatamente vazio mas tem mais que ver com algum tipo de incapacidade ou de impulsividade de chegar ao outro. Como eu sou muito catastrofista, um tremendista, eu acho que, em última análise, a gente nunca chega, a gente nunca comunica de verdade. Os diálogos são uma tentativa de comunicação, de entendimento. A gente nunca entende completamente, não ocupa o lugar do outro, não é possível, por mais empático que sejamos. A maneira que eu tenho de escrever a minha obra é tentando escutar em mim as questões que podem pertencer aos outros. Porque eventualmente todos temos as questões dentro de nós, podemos precisar de lhes responder ou não. Eu posso ter em mim as questões que pertençam a uma mulher. Eventualmente, como não sou mulher, talvez não tenha que lhes responder, mas não significa que eu não seja capaz de entender que questões são essas. O que será fundamental no percurso de uma mulher, assim como de uma pessoa mais velha, de uma criança. Eu acho que é exatamente o o a essa caixa de perguntas, esse lugar de questões, que nos possibilita entendermos e criarmos inclusive afetos, empatias, defendermos as outras pessoas. Mas isso tem um limite e essa é a desgraça da humanidade. Há um momento em que a gente não a mais. Você não tem como entender a mulher se não for mulher, não tem como entender um negro se você não for negro. Eu escrevo sobre mulheres, já escrevi sobre negros, sobre crianças, sobre pessoas mais velhas, sobre islandeses, japoneses, brasileiros, mas eu tenho um limite. A literatura cria um pouco a ilusão, fornece a impressão de que eu consigo criar uma elasticidade e chegar mais perto e essa é a maravilha de escrever, é ter a impressão de que eu posso, num instante, ter entendido o que é ser uma mulher, mas eu tenho um limite.
Sei que todo mundo pergunta, mas eu quero perguntar também (risos). Como você se sentiu sendo prefaciado por Saramago?
Valter Hugo Mãe: Eu me senti mais alto, mais lindo (gargalhadas). Eu fiquei muito comovido porque naquele dia que o Saramago faz o discurso dele sobre o meu livro eu entendi uma coisa que eu não tinha entendido até então: que o retorno de alguém que nós iramos e crescemos a irar é quase um objetivo que a gente tem e não sabia que tinha. Eu nunca tinha pensado na hipótese de um escritor tão grande quanto Saramago pudesse ler um livro meu sequer. Nunca me ou pela cabeça que um escritor como Saramago pudesse não só ler o livro como elogiá-lo daquela forma. Então eu pensei que estava computando uma espécie de sentido da vida, que a gente cresce assim meio amando alguém e depois a pessoa ama de volta, então tem assim uma reciprocidade, uma correspondência que é muito gratificante e que é muita assustadora.
Existe o Valter escritor e o Valter pessoa? Eles se encontram?
Valter Hugo Mãe: Eu não consigo deixar de escrever, eu estou escrevendo todo o dia, tudo que eu faço eu anoto, eu desenho, tudo é escrita para mim, mas não é o escritor que levou o cidadão. É o cidadão que dominou o escritor. Eu trago o escritor como se fosse um animal doméstico, um animal mais ou menos adorável, mas que eu preciso que ele se comporte. Não quero que seja o contrário. Eu preciso de manter muita normalidade. Minha família é uma família simples, minha mãe estudou até a terceira classe, meu pai estudou por quatro anos. Minha mãe é a pessoa a quem eu conto os meus livros. Ela não lê os meus livros. É normalmente a primeira pessoa que conhece os meus livros. Eu habito esse lugar do indivíduo que traz os livros da terceira classe, das pessoas que estão pelas ruas fazendo suas compras e que vão todos os dias buscar pão fresco e fazem ovos fritos. Não tenho muito dessa coisa da vida do palácio, mas agradeço um palácio de vez em quando, fico muito contente. Com uma janela para a feira do livro é espetacular (risos).
E o que está achando do Flipoços?
Valter Hugo Mãe: Eu estou adorando. O lugar é perfeito, é lindo, o jardim é maravilhoso, já encontrei uns livros que eu queria e não tinha em outros lugares, as pessoas têm sido incríveis e sempre tem isso, eu tenho a sensação de que em cada canto eu encontro um leitor que se torna amigo, leitores que lidam comigo com muita proximidade e isso é muito gratificante. Eu já dei um giro e sempre tem alguém que reconhece.
Você está lendo algum brasileiro?
Valter Hugo Mãe: Eu li o Edney Silvestre ontem. Eu comprei um livro dele chamado Pequenas Vinganças. O Edney tem uma coisa que eu gosto muito. Ele cria uns pontos de vertigem em que de repente ele descreve uma situação, questões de violência, um crime que acontece, e tudo é tão gráfico, tão realista que parece que nós próprios estamos dentro daquela porrada, daquela morraça, daquela violência. É absolutamente sensacional a forma como ele escreve. *entrevista concedida a jornalista da Secom – Carolina dos Santos Barbosa
Flipoços
Ainda no sábado (26), Valter Hugo Mãe participou, no hall das Thermas Antonio Carlos, da solenidade de abertura da 20ª edição do Festival Literário Internacional de Poços de Caldas, o Flipoços, que segue até 4 de maio, no Parque José Affonso Junqueira, com entrada gratuita. Depois, no Palco Sulfurosa, fez a palestra de abertura da programação, com mediação de Pedro Pacífico. Para uma plateia lotada, Mãe falou de família, de suas influências literárias, de seus hábitos como leitor e escritor, numa conversa descontraída que levou os espectadores às gargalhadas.
Nesta segunda-feira (28), o escritor participa da mesa “A palavra como revolução”, com mediação do professor Sergio Montero, no Palco Sulfurosa, às 10h, com entrada gratuita.
Confira a programação completa: www.flipocos.com.