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Itamar Vieira Junior em Poços de Caldas: “A literatura é a minha profissão de fé”

Considerado um dos principais escritores brasileiros da atualidade, Itamar Vieira Junior participa do penúltimo dia de programação do Flipoços – foto Igor Avelar

“O fogo só existe livre”. Com dois Jabutis, mais importante premiação da literatura brasileira, um LeYa, principal prêmio em língua portuguesa, e traduções para 31 idiomas diferentes, Itamar Vieira Junior se consolida como o maior nome da literatura nacional do momento. Apesar de sucesso de crítica e de público – encontro tão raro quanto a agem do Halley – o escritor, que bateu a marca de um milhão de exemplares vendidos, mantém na vida a singeleza de suas personagens. Como em suas obras, é aí que reside a sua potência.

Na manhã quase fria deste sábado, 3 de maio, ele recebeu as jornalistas Carolina dos Santos Barbosa, da Secretaria Municipal de Comunicação de Poços de Caldas e Fabiana Assis do G1, num bate-papo. Na pauta, o menino Itamar, alfabetizado pela vizinha Marlene; as mulheres que emanam força dos lugares mais hostis e personificam o feminino quase sagrado das suas obras; as incertezas do ofício que ainda o fazem um servidor público licenciado; as angústias e autoexigências do escritor; e, especialmente, a beleza mágica e transformadora da literatura.

A escrever o livro que fecha a trilogia que reúne Torto Arado e Salvar o Fogo, ele deixa um convite: “vamos voar com o Chupim?”, pássaro que dá nome ao seu primeiro livro infantil publicado, lançado em 2024.

Você vem bastante a Minas?
Itamar Vieira Junior: Eu já vinha antes, mas depois que eu comecei a publicar, Minas sempre me recebe com muito carinho, eu participo de muitos festivais aqui. Acho que Minas talvez seja o lugar perto de São Paulo que eu mais vá. Essa semana eu estava em Paracatu, que é bem diferente dessa região. Já fui para Araxá, Paracatu, Ouro Preto, Mariana, Belo Horizonte muitas vezes, Itabira, Juiz de Fora, só não conheço mais pro Norte, só pelos livros do Rosa.

Qual a sua expectativa para a participação no Flipoços?
Itamar: O Flipoços é uma grande celebração do livro, do autor e dos leitores. Está fazendo 20 anos e a expectativa é muito grande. Esse evento cobre uma região muito grande de Minas, interessa muito as pessoas. As minhas expectativas são as melhores, de encontrar os leitores, poder celebrar o livro e o leitor. Eu acho que quando a gente a por esses festivais, no fundo, isso desperta o interesse dos leitores mas também de pessoas que não estão lendo naquele momento e vão se sentir incentivadas a ler. É uma maneira de divulgar e fomentar a leitura.

Você é hoje o maior expoente da literatura brasileira. Queria que você falasse um pouquinho sobre isso, sobre a literatura no Brasil e o que você acha da literatura como voz para comunidades, minorias, qual é o poder que a literatura tem neste sentido?
Itamar: A literatura brasileira é uma literatura de excelência, se a gente for olhar ao longo da história, temos grandes autores, é uma literatura inspiradora e talvez tenha sido a literatura brasileira que me inspirou a querer escrever. Eu estou pensando na minha adolescência e na minha juventude, como eu fui estimulado por professores a descobrir a literatura brasileira, desde Machado, ando por Jorge Amado, Clarice Lispector, Lima Barreto, ou seja, são autores que fizeram a minha cabeça e me fizeram querer escrever. Eu percebo hoje, neste momento, o Jeferson Tenório até que fala isso, que a gente tem vivido um movimento, uma espécie de primavera na literatura brasileira, com novos autores despontando e narrando o Brasil em sua diversidade e complexidade. O Brasil é um país do tamanho de um continente, é um país com muitas origens, acho que durante um tempo a literatura brasileira contemporânea se fixou muito nas cidades, nos grandes centros e não conseguia dar conta dessa diversidade que é o país. E agora a gente tem um movimento de autores de diversas regiões que chegam e narram esse Brasil. Não é uma primavera só pela diversidade e qualidade do que está sendo escrito, mas porque isso tem despertado o interesse dos leitores como há muito tempo não despertava. Então, é um momento muito especial, muito novo.

Eu citei o Jeferson Tenório, que é carioca, mas radicado no Rio Grande do Sul e hoje estava lendo uma matéria no jornal sobre a Socorro Acioli, que é do Ceará e chegou a 200 mil livros vendidos, o Stênio Gardel, que lançou o primeiro romance dele e ganhou um prêmio de tradução muito importante nos Estados Unidos, o National Book Awards, Torto Arado ganhou prêmio na França, em Portugal, foi indicado ao Booker Prize, no Reino Unido, a Carla Madeira, aqui de Minas, já ou um milhão de exemplares vendidos, ou seja, a gente tem vivido um bom momento na literatura brasileira porque os leitores têm abraçado essa literatura e têm descoberto ela no seu valor, na sua qualidade. Espero que esse movimento siga por muito tempo. A gente já não via isso na literatura brasileira há muito tempo, desde autores como Milton Hatoum, lá no começo dos anos 2000, que vendia muito, o Jorge Amado, o João Ubaldo Ribeiro, a Clarice Lispector, que ainda é muito vendida. Ou seja, há muito tempo a gente não via um movimento tão forte dos leitores em torno da literatura brasileira e isso é muito bom.

Você acha que essa força está no local, no regional, na brasilidade. É essa brasilidade que é tão específica, que transforma essas obras em universais?
Itamar: Tolstói dizia “Se você quer universal, cante a sua aldeia’. Eu acho que os autores brasileiros têm cantado a sua aldeia em toda a sua força, em toda a sua beleza e em toda a sua contradição também. A literatura se debruça sobre a experiência humana, sobre a complexidade da vida, e os autores têm feito isso com grande êxito, tem se debruçado sobre a nossa história. Eu acho que tudo não é explicado só pelo que é escrito nem pelo que está sendo apresentado ao público leitor. Eu acho que é algo maior, que envolve as mudanças que o país ou desde a redemocratização, a gente tem uma série de políticas públicas, de políticas de reparação, que têm impactado, ainda que de maneira silenciosa na sociedade, uma mudança mais abrangente no perfil social do brasileiro e isso vai reverberar naquilo que está sendo escrito.

Eu sempre digo que nós que escrevemos somos influenciados pelo nosso tempo, pelos problemas do nosso tempo, por aquilo que incomoda. E se nos incomoda é porque algo está mudando nas estruturas, as pessoas estão despertando. Claro, se a gente for olhar a literatura brasileira, há muito tempo os problemas sociais estão num plano de frente, por exemplo, os escritores do ciclo do Nordeste, Graciliano Ramos, o próprio Jorge Amado, a Rachel de Queiroz, o José Lins do Rêgo já falavam das desigualdades, dos problemas sociais, dos traumas do colonialismo e da escravidão e isso não ou, isso ainda é presente no nosso cotidiano, só que em novas perspectivas. Eu acredito que a literatura brasileira escreve mais sobre o Brasil, de uma maneira honesta, mais profunda e de muitos pontos de vista e isso tem despertado o interesse dos leitores brasileiros.

Eles leem O Avesso da Pele para se colocar no lugar do outro, para entender essa diversidade, eles leem A cabeça do Santo para fruir, para se divertir, mas também para entender que esse país tem um lado místico, mágico, que nem todos têm o, mas mostra a grandeza e a diversidade desse país. Eu imaginava, enquanto escrevia Torto Arado, o que é que uma história como essa, tão simples, de uma família que vive numa fazenda ainda com resquícios da escravidão, poderia despertar de interesse num leitor que é cada vez mais urbano, que vive nos grandes centros, mas ainda bem que eu estava equivocado. Eu tinha dúvidas sobre o interesse do leitor. Escrevi porque era o que eu queria escrever, não podia me trair neste sentido, mas tinha dúvida se haveria interesse na leitura. O livro me mostrou justamente o contrário, porque os leitores abraçaram essa história, mesmo não vivendo aquilo, mesmo não tendo experimentado, querem conhecer mais do Brasil.

Eu sempre digo, a gente estuda a civilização grega, a egípcia, a gente entende a força e a grandeza dessa civilizações. O que acontece conosco, com o brasileiro, com o latino-americano, com o americano, desde a ocupação desse continente, com toda a violência e com tudo que se seguiu, é mais ou menos uma história como essa, uma história de beleza, de criação de saberes e de resistência e, no futuro, a gente vai olhar pra isso como a gente olha para essas histórias. Então, é isso: a gente está escrevendo a história hoje, com ela acontecendo.

Como leitor, a gente consegue ver que a sua experiência profissional como geógrafo está ali, de alguma maneira, nas suas obras. Você sempre quis ser escritor, produzir ficção ou isso aconteceu mais tarde, como foi essa transição da academia para a literatura?
Itamar: Quase não existiu essa transição (risos). Eu fui alfabetizado por uma vizinha, que era filha do verdureiro, a Marlene. Ela, em particular, me apresentava os livros, embora eu não vivesse numa casa de leitores. E a partir dali, quando eu descobri aquela magia da leitura, de ler um livro e adentrar novos mundos, descobrir novos universos, eu quis fazer aquilo e já fazia muito cedo. Quando eu tinha por volta de 9 anos, minha mãe achou as coisas que eu escrevia e ficou um pouco preocupada porque ela dizia que estava perdendo tempo… Éramos de uma família de trabalhadores, pessoas que ganhavam a vida com muita dificuldade. Ela ficou um pouco brava e, naquele momento, a literatura virou um segredo pra mim. Claro, continuava lendo, escrevendo, meus irmãos pediam brinquedos de presente e eu pedia livro e sempre que tinham oportunidade eles me davam, nunca se recusaram. E eu continuei escrevendo e lendo, escrevendo e lendo. Por não existirem pessoas a nossa volta que escreviam, que viviam disso, eu não tinha referência. Eu lia autores que já tinham morrido. Na minha cabeça de criança, para ser autor precisava ter morrido, não era uma profissão. Então eu segui outro caminho, fui fazer Geografia, mas a literatura sempre esteve no meu horizonte, era um hobby, algo de afeto, que nas horas vagas eu fazia. Ler e escrever. Ler e escrever. Até que chegou um dia, eu tinha 32 anos, e já tinha escrito algumas coisas, que eu disse assim: agora vou tirar isso da gaveta. Já tinha me formado, feito mestrado, já tinha um emprego público. Tirei da gaveta e mandei para um concurso literário o meu primeiro livro de Contos, que foi publicado. Concorria de maneira anônima, ainda bem porque ninguém precisava saber, se o livro não fosse bom não iriam saber que foi eu que escrevi (risos). E assim começou, de lá pra cá, eu publiquei cinco livros, de 2012 até agora. Mas começou de uma maneira muito tímida, eu ainda mantenho vínculo com o Incra, eu sou servidor licenciado sem remuneração porque ainda tenho minhas dúvidas, tenho o pé no chão. Quando eu recebi o anúncio do prêmio LeYa, em 2018, meu pai estava muito doente. Ele morreu duas semanas depois. Eu me lembro que eu disse pra ele, olha, ganhei um prêmio, e na época, tinha um prêmio pecuniário considerado alto pra gente, e a primeira coisa que ele me disse foi: mas você não vai pedir demissão do emprego não? (risos). Daí continuei trabalhando, veio a pandemia, não tinha o que fazer, o livro não tinha acontecido, e depois o livro foi acontecendo, vieram as traduções no exterior, muitos convites eu não consegui aceitar e chegou um momento em que eu tive que pedir licença para experimentar viver disso por um tempo. E assim tem sido.

Você, como aconteceu com a Carla Madeira, foi primeiro conhecido no exterior…
Itamar: Eu mandei para um prêmio literário, o LeYa, que é dado por um grupo editorial português, e a gente concorre anônimo, com pseudônimo, são muitos candidatos, eles recebem mais de mil originais. Eu confesso que fiz um envio protocolar. Eu queria tirar isso da gaveta e escrever. Meses depois o livro foi escolhido. Eu mandei porque eu não tinha uma editora no Brasil, eu cheguei a falar com os editores pequenos dos livros anteriores, mas não tinha espaço, não tinha interesse naquele momento. O livro ganhou um prêmio em Portugal, foi publicado em lá, teve um alcance grande, é um prêmio muito divulgado, eu viajei a Portugal várias vezes, de norte a sul do país, participei de muitas coisas e, seis meses depois, o livro foi publicado no Brasil. Mas o fato de ter sido publicado lá, da imprensa portuguesa ter escrito sobre o livro, acho que ajudou na publicação aqui no Brasil. E depois, timidamente, o livro foi chegando aos leitores. Veio a pandemia, eu me lembro que eu fiquei muito disponível para quem lia o livro, eu participava de muitos clubes de leitura on-line, eu acho que isso foi criando um boca a boca entre os leitores, mesmo sem viajar, sem feiras literárias, sem circular, os leitores foram se identificando, lendo e divulgando a história. E quando chegou no fim de 2020, vieram os prêmios Jabuti e Oceanos. Depois que ganhou os dois prêmios, acho que o interesse explodiu, os veículos de comunicação vieram me entrevistar para saber quem era esse escritor, pouco a pouco foram chegando as traduções e, neste momento, são 31 idiomas, o último contrato foi para o idioma Tâmil, na Índia, tem cingalês, macedônio, azerbaijano, télugo. Ano ado, o livro ganhou o prêmio Montluc na França, chegou a finalista do Booker Prize, que é um prêmio voltado para tradução de língua inglesa, foi semifinalista no prêmio Dublin, semifinalista do prêmio Oxford para tradução, eu acho que tudo isso ajuda, desperta o interesse dos leitores. Salvar o Fogo ganhou o Jabuti, as traduções também estão caminhando, esse mês chegou a tradução alemã, ano ado saiu a búlgara, tem outras traduções a caminho, a tradução em inglês que sai no ano que vem, já está pronta, mas tem um trabalho grande de pré-venda e divulgação antes de publicar. As coisas estão indo, vamos ver onde vai dar.

Você é um caso raro de sucesso de crítica e de público, poucas vezes essas duas coisas caminham juntas… Você já pensou nisso, a que você credita esse encontro?
Itamar: É difícil. É mais fácil escrever (risos). Eu acho que não é unanimidade, nem precisa ser. Tem críticas que acolhem, são favoráveis, tem outras que não são favoráveis. Os leitores acolhem com interesse, mas não vai agradar a todos… É difícil dizer, eu não sei. Eu, como leitor, me interesso por boas histórias, eu tento contar boas histórias, não sei se serei compreendido, mas acho que pelo público hoje, dá pra dizer que eu sou compreendido, pelo menos por uma parte.

Aumenta a responsabilidade, como fica a cabeça do escritor, com tantos prêmios, traduções, o segundo da trilogia também está nesse caminho, você está escrevendo o terceiro, como fica a cabeça, hoje você escreve com o mesmo desprendimento do primeiro?
Itamar: Com o tempo, a gente vai ficando mais rigoroso com a gente mesmo, mais crítico ao que a gente escreve. Sinto que cada vez fico mais exigente comigo mesmo, isso demanda um retrabalho com o escrito. É muito provável que se eu escrevesse Torto Arado hoje, o livro não seria como aparece porque a gente amadurece, a gente muda, a gente escreve uma história hoje com a cabeça de hoje, com as ferramentas que a gente tem hoje, mas daqui a cinco anos, muita coisa pode ter mudado, a vida é dinâmica e a gente é atravessado. Eu tento não me trair, essa é a verdade. Eu escrevo sobre aquilo que me pede para ser escrito. Eu não quero fazer concessões neste sentido. Porque me trair seria muito perigoso. Imagina escrever algo que não é capaz de envolver a você, em primeiro lugar. Eu preciso ter esse envolvimento com a história, eu preciso escrever sobre aquilo que está gritando para ser escrito.

Teve um momento, depois que Torto Arado ganhou os prêmios, que havia uma profusão de meios de comunicação querendo me entrevistar, eu já estava escrevendo o segundo e numa semana eu parei e disse: e agora, se eu não conseguir escrever, corresponder as expectativas das pessoas? ou assim pela cabeça, mas não ficou. Teve um dia que eu acordei e disse: eu não tenho que me preocupar com isso, a história de Torto Arado não me pertence mais, pertence aos leitores. Da porta de casa para dentro eu tenho que ser o Itamar, que se interessa pela literatura, que lê, que escreve e que tem um projeto literário que ele quer seguir, são as histórias que estão sendo alimentadas ao longo do tempo para serem escritas no futuro. Eu não posso fazer concessões, tenho que ser coerente comigo mesmo. E aí a coisa ficou bem clara e hoje eu já não me preocupo. Claro, sou exigente, eu escrevo, reescrevo. E vou dizer que o primeiro romance foi mais fácil escrever porque não tinha expectativa nenhuma, nem minha, então a coisa flui melhor. Depois, acho que, além da expectativa dos leitores que ficam perguntando sobre a história e sobre o livro, há uma expectativa minha também de apresentar sempre o melhor. O próximo sempre é o mais difícil.

Você contou da Marlene, que te ensinou a ler, falou da sua mãe e nas suas obras a presença do feminino é muito forte, muito potente. Qual é a dimensão, o tamanho, a importância do feminino na sua vida, que pera a obra?
Itamar: Eu tenho três irmãos, somos quatro homens. Na minha casa só tinha a minha mãe de mulher. Mas minha mãe só tinha irmãs, era uma família muito próxima, estavam ali as irmãs de minha mãe, as irmãs de meu pai, as minhas avós, as pessoas da minha família tinham filhos cedo, quando eu nasci minha mãe tinha 18 anos, então eu conheci minhas avós, minhas bisavós e até uma trisavó. A presença dessas mulheres era muito forte nesse ambiente doméstico. Os homens saíam para trabalhar. Os homens não eram muito diferentes dos homens do mundo, reproduziam o machismo, a misoginia, tinham seus problemas, suas questões. Nós, os filhos e primos, ficávamos ali muito perto dessas mulheres, que eram atravessadas por esta violência estrutural mas que também não se curvavam a essa violência. Isso, de alguma maneira, se impregnou no meu imaginário como personagens de força, que emanam força nesse lugar mais hostil. A hostilidade que era destinada às mulheres não era destinada aos homens, não que a vida deles fosse fácil, mas eles ainda reproduziam certa violência. Eu sempre brinco com os leitores que estão lá também os homens, o Zeca Chapéu Grande, o Severo, o Moisés, o Mundinho, mas é claro que as mulheres aparecem num plano de frente.

Além da coisa da família, eu nasci numa cidade que tem um diferencial, que é Salvador, que tem uma história muito particular, muito peculiar. Foi a primeira capital do Brasil, para lá fluíram não só os imigrantes portugueses, mas um contingente grande da diáspora africana e muitos que aportaram lá trouxeram essa ideia do matriarcado muito forte. Salvador é conhecida pela sincretismo religioso, pelas religiões de matriz africana, a gente tem muitos terreiros de Candomblé pela cidade e nesses lugares as mulheres dominam. Elas são as sacerdotisas. E são muitas e não é de hoje, é ao longo da história. Uma antropóloga americana, a Ruth Landes, foi para a Bahia nos anos 30 pesquisar o Candomblé. Ela ia escrever uma tese sobre o Candomblé, mas quando chegou lá, ficou impressionada com o poder das mulheres nesses lugares e acabou escrevendo uma tese sobre o matriarcado, sobre o poder das mulheres, que virou um livro que se chama Cidade das Mulheres porque ela fala sobre a força do feminino na constituição da cidade. Os candomblés existiam nas áreas mais pobres, mais periféricas – ainda é assim hoje – e nesses lugares as mulheres replicam a força dessas sacerdotisas também no seu cotidiano, na sua casa, entre as pessoas que conhecem. Então a gente vê muitas mães solo, liderando sua comunidade, como presidente de associação, reclamando porque o asfalto está esburacado, porque não tem calçamento na rua, ou seja, acho que essa convivência reverbera nas histórias que eu escrevo. Daí, o peso que elas têm em cada um desses escritos. O Jorge Amado escreveu muito sobre as mulheres, a força das personagens do Jorge é tão grande que elas são os títulos de muitos romances: Tieta do Agreste, Tereza Batista, Dona Flor, Gabriela, ou seja, elas já estão lá de uma maneira inegável e eu credito isso a mesma influência que ele sentiu, que a cidade emana o poder dessas mulheres.

Ano ado, você escreveu um livro para as crianças, o Chupim. É diferente escrever para esse público?
Itamar: Escrever pra criança é diferente. Eu me tornei leitor porque tive o à literatura infantojuvenil muito cedo. Tem um livro que eu li, não foi o primeiro, mas foi um livro que me marcou muito, eu deveria ter uns 7 pra 8 anos, que se chama O Caso da Borboleta Atíria, da Lúcia Machado de Almeida. Eu li esse livro e fiquei tão maravilhado, que quando eu terminei fui escrever uma história que tinha outros bichos que não apareciam lá na história da Lúcia. Naquele momento, e percebi, de uma maneira intuitiva – eu não tinha capacidade de elaborar um pensamento explicativo sobre aquilo – que a literatura abria mundos para a gente. Eu vivia num lugar que tinha um quintal, que tinha mata, que tinha besouros, borboleta, mariposa, formiga. Eram bichinhos andando ali. E aí ela humaniza, claro, mas transforma aqueles bichinhos insignificantes em personagens, cria mundo e dá vida. Ali se fixou em mim a grandeza da literatura: transformar o trivial, o banal, o singelo, o insignificante, em maravilhoso. Eu disse: eu quero fazer isso, transformar as coisas simples em maravilhosas. E sempre alimentei essa vontade de escrever livro infantil. Eu cheguei a escrever um livro há uns 15 anos, que eu não publiquei, que conta a história de um menino que vive num lugar muito hostil, muito seco, que fazia amizade com um urubu, que era o que tinha nesse lugar. Mas não publiquei, nem sei se quero publicar, mas a partir dali comecei a alimentar esse desejo de quando fosse possível, escrever uma história para crianças.

As crianças são muito curiosas, elas estão atentas aos problemas do mundo, a gente que não se engane. A literatura é a pergunta para qual a gente não tem resposta, mas só o fato de perguntar já estimula a compreensão, o raciocínio, e foi dessa maneira que surgiu Chupim, que é uma história que aparece de uma maneira muito breve em Torto Arado, a história das crianças que correm pelos campos para espantar o que chamam de praga, que é um arinho preto, o Chupim, e que deve estar colhendo o alimento ali porque as matas originárias já não existem. Eu faça um paralelo com essa história porque essas crianças são filhas de trabalhadores que vivem de fazenda em fazenda procurando trabalho e a vida deles não é muito diferente da do chupim, porque quando acaba a colheita eles são convidados a se retirar. Da mesma maneira, eles vivem de lugar em lugar, como o chupim. Foi assim que nasceu essa história e de lá pra cá tenho colhido boas leituras com os pequenos leitores. A beleza do livro infantil é que a gente não concebe sozinho. É algo que se faz em coletivo. Eu não ilustro, tem a artista que faz as imagens, cada livro tem um formato, página, cores diferentes. Comecei a história perguntando ‘será que eu consigo?’ e terminei com vontade de escrever outra vez para viver toda essa experiência.

É intencional você ar uma mensagem, despertar uma reflexão com a sua obra?
Itamar: Eu vou ser bem honesto. Eu acho que uma das coisas que me move a escrever é o fato de contemplar e refletir sobre o que está sendo escrito e, geralmente, isso parte de um incômodo. No caso dessa série de romances, que conclui com o próximo, o que para mim é central é pensar a terra, o território. Eu não estou só pensando a terra de trabalho na roça não, estou pensando em tudo, no chão que a gente pisa, como ela é elementar para qualquer ser humano e muitos ainda têm esse direito negado, não só aqui no Brasil. Você vê o que acontece na Palestina, em outros lugares da guerra entre Rússia e Ucrânia, os imigrantes sendo expulsos dos Estados Unidos sem direitos, às vezes morando lá há mais de 30 anos, ou seja, o direito à terra é elementar, a gente não prescinde dele, precisamos dele para viver.

A ideia desses romances gira em torno disso, mas, para mim, a história sempre começa com as personagens, são elas que me levam, eu nunca penso num tema para escrever, eu penso nelas e elas, assim como nós, são atravessadas pela vida, pelo mundo. Quantas coisas que acontecem no mundo nos impactam? Às vezes, a gente nem para pra refletir sobre isso, se foi eleita uma ou tal pessoa, se a mudança climática faz com que aqui seja mais quente, chova mais ou menos, a gente não pensa como essas coisas impactam na nossa vida, até o ado. A história do Brasil é uma história de violência e a gente aprende colonização, escravidão na escola, parece que tudo isso ficou para trás, mas não é bem assim. Essas coisas ainda reverberam no cotidiano de muitas pessoas, porque são matrizes da desigualdade. A gente ainda não olhou pra isso de maneira honesta e sincera para poder entender e criar mecanismos que sejam capazes de romper com isso. Então, as personagens vivem nesse mundo, elas são atravessadas por isso, mas a história pra mim tem que chegar com a personagem, eu não penso num tema, a priori. Porque se eu pensasse num tema e as personagens existissem ali só para figurar, para interpretar esse tema, eu acho que não teria vida. Primeiro, eu como escritor, tenho que me apaixonar pela personagem porque se isso não acontece, eu tenho dúvidas se o leitor vai conseguir fazer isso. E muitas vezes é isso que faz a gente atravessar a leitura de um livro nesse tempo de grandes distrações, de celular, de tanta coisa. Eu penso nelas, elas que chegam e, com elas, chegam todos os seus problemas. Elas vivem num mundo que é atravessado por diversas questões e quando contam as suas histórias estão contando a história desse mundo também. A história de cada uma é a história dela. Mas quando a gente conhece a história de outro, essa história conta uma história maior, a história de um lugar, de um país, a história da humanidade, ou seja, a personagem conta a sua história, mas a história dela, muitas vezes, é uma alegoria de uma história coletiva, da história do mundo.

Itamar Vieira Júnior recebeu as jornalistas Carolina dos Santos Barbosa da Secom e Fabiana Assis do G1 para um bate papo descontraído sobre literatura, cultura, a vida e o fogo – foto Raissa de Melo

Valter Hugo Mãe esteve aqui e disse que ele gosta de ler um livro que prende a atenção do leitor já no início, que entrega grandes acontecimentos já no começo. Seus dois romances são muito impactantes no início, com fatos fundamentais para a história. O que podemos esperar do terceiro?
Itamar: Vou precisar reler para ver se o início está forte (risos). O que o Valter fala tem razão, é uma responsabilidade grande. A não ser que você seja o Mia Conto ou a Annie Ernaux, que as pessoas vão ler pela marca, é aquele autor que você já conhece, que tem uma obra sólida, premiada, aí você se permite atravessar aquilo às vezes sem esse impacto do começo. Mas nós que estamos chegando e convidando os leitores a ler, precisamos provocá-los e dizer que isso pode ser mais interessante do que rolar a tela do celular.

As pessoas acham que eu sou religioso, porque abordo isso com muito respeito, mas com interesse de cientista mesmo, de quem teve essa formação nas Ciências Sociais. Eu digo, eu tenho uma religião, minha religião é a literatura, é a minha profissão de fé, porque quando eu falo com os leitores estou sempre estimulando a ler, falando sobre a beleza que é ler um livro, se permitir viver a vida das personagens. Um livro fechado é um objeto, mas se você abre pra ler você empresta seu corpo para reviver aquela história porque você lê com os seus olhos, encadeia todos os eventos, imagina como são as personagens, usa seu corpo para imaginar aquelas histórias. Você vai se arrepiar, se revoltar, se indignar, rir. Você empresta seu corpo inteiro para viver a história. E a história vive outra vez, porque viveu uma vez no corpo de quem escreveu e vai viver todas as vezes que for lida pelos leitores. Tem coisa mais bonita que isso? Eu me emociono com o cinema, mas são os atores representando. O livro só precisa de você, não precisa que nada seja projetado. Nos permite viver a vida do outro, a vida do diferente. A leitura é maravilhosa e o leitor contribui, participa. Quando os leitores me perguntam: quando você cortou a língua da irmã você quis representar o silenciamento das mulheres e das pessoas negras? Eu sou bem sincero, digo não, não pensei nisso, mas isso não quer dizer que não seja verdade. Porque o escritor não tem a distância necessária para refletir sobre o que ele escreveu, mas a interpretação do leitor é muito válida porque já tem uma distância e ele consegue interpretar outras nuances. Mas isso só acontece porque o leitor participa ativamente, empresta seu corpo para interpretar aquela história, para mover aquela história uma outra vez. Olha a força, a beleza da literatura.

Tem uma pesquisadora americana chamada Lynn Hunt, que escreveu um livro chamado A invenção dos direitos humanos, que traz a trajetória dos direitos humanos como invenção social para a gente conseguir viver em sociedade com dignidade, preservando a vida humana. Ela fala que no fim do século XVIII início do XIX, os romances publicados nos jornais, capítulo a capítulo, tiveram um papel fundamental para a consolidação dessa noção de direitos humanos. A população não era alfabetizada, quem lia os romances era uma elite letrada que participava do poder, que foi se sensibilizando para algumas questões humanas que estavam em voga naquele momento. A condição da mulher na sociedade e a escravidão são os dois exemplos que ela dá. Ou seja, a literatura participa ativamente da vida humana, tem um papel humanizador, talvez não seja a função dela, mas pelo ato de ser uma expressão artística, de fruir, nos provocar. A gente não lê só para ter conhecimento, para acumular algo, a gente lê pra fruir, pra viajar, pra viver, mas a gente não a indiferente nessa viagem, a gente é tocado por ela e ela nos transforma. – texto Carolina dos Santos Barbosa/Secom

Flipoços
Neste sábado (3), penúltimo dia do Festival Literário Internacional de Poços de Caldas, (26), Itamar Vieira Junior participa da mesa “Territórios da Palavra: A Literatura de Itamar Vieira Junior”, às 18h30, no Palco Sulfurosa, no Parque José Affonso Junqueira, com entrada gratuita e aberta. Autor dos sucessos “Torto Arado” e “Salvar o Fogo”, suas narrativas mergulham nas profundezas do Brasil rural, explorando temas como memória, ancestralidade, desigualdade social e resistência. Nesta conversa, o escritor compartilha sua trajetória, os processos de criação de suas obras e a força das vozes que ecoam em seus livros, revelando histórias que transcendem o tempo e o espaço. Um encontro imperdível para quem busca entender a potência da literatura como instrumento de transformação.

Até este domingo (4), o público ainda pode prestigiar a extensa programação e visitar a Vila Literária. Confira a programação completa: www.flipocos.com.

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